terça-feira, 28 de abril de 2009

Registro do dia 06/04/2009: Encontros com Cartier-Bresson e Juliano Pessanha

Encontro com Bresson pela manhã: Cartier-Bresson foi repórter fotográfico do século XX, grande nome da escola francesa de fotografia e um interessante desenhista.

O encontro com Cartier-Bresson se deu pela manhã e por intermédio do vídeo. Dizia Bresson naquela tela grande, daquele jeito francês traduzido em legendas: “é necessário transcrever as idéias no papel (pelo desenho, pela escrita), mesmo que sejam ruins”. O apelo ao registro é insistência na possibilidade de materializar idéias, de expô-las ao mundo e colocá-las em comunhão com um outro sempre diferente de si. Só a comunhão com um outro pode dar vida às idéias que estavam ali guardadas dentro da gente.

Um pouco antes de Bresson havíamos visitado as pinturas feitas por nós mesmos . As pinturas foram feitas após visita à exposição “Mestres Latino-Americanos na Coleção Femsa” e me ajudou a exercitar a difícil função de traçar em linhas de desenhos, o que imagino em traços de palavras. Saiu ruim, valeu o exercício; gostaria de exercitar mais. Temos conversado muito, dentro do grupo, sobre quão difícil é racionalizar nossas impressões, emoções, linguagens e aprendizados nos limites do registro escrito. Às vezes, em avesso, minha racionalidade também me impede de traçar livremente a imaginação em linguagens não verbais. A razão também bloqueia possibilidades de embrenhamento em veredas do desconhecido...

Bresson, em grande exercício de autoria, desenhava cenas da realidade no papel que eram muito parecidas com as cenas que registrava em fotografia. Seu registro técnico fotográfico, tanto quanto o desenho rabiscado, era também um registro autoral, um foco de intencionalidade. Achei algo de Bresson que traz em curtas palavras e de forma bem legal esta reflexão da “intencionalidade” na fotografia... Está em uma entrevista que concedeu ao Estadão, na qual diz:

“Pode-se fazer qualquer coisa com uma máquina fotográfica. Só é difícil descascar uma batata com ela. Todos são fotógrafos, há tantos fotógrafos no mundo quanto aparelhos, não é? (...) Não tenho nada contra, mas, para mim, só há uma coisinha na fotografia, um aspecto bem pequeno, que me cativa o espírito: a observação da realidade.”

E penso que esta realidade não pode existir senão como percepção sua, como observação de um sujeito que olha, registra e expõe. E que expondo a obra sua, está expondo a si próprio, apresentando uma parte de si ao mundo dos homens. A autoria só pode se dar a partir deste acordo inicial que é a disposição em se expor.

Ao fotografar, outra parte de dentro do ser de Bresson, diferente do olho e diferente da máquina, interage com o mundo. Bresson, ao fazer um retrato, diz esperar, em exercício de minúcia, “o silêncio interior, o silêncio dentro da pessoa”. Sua fotografia, sendo ainda observação da realidade, não deixa nenhum pouco de ser poesia. A passagem de uma a outra se dá ali, dentro daquele tempo, no exercício da espera, no aguardar do silêncio. O silêncio é, neste caso, a forma de construção de um momento, onde alguma verdade se instaura diante dos olhos do poeta. Manoel de Barros diz uma coisa bem intrigante sobre esta “verdade”, e é neste sentido que eu a emprego aqui. Ele diz assim: “Tudo o que não invento é falso”.

E esta questão sobre a idéia de “verdade” nos traz algo tão grandioso quanto, que é a fundamental necessidade da invenção para nos fazermos vivos, para realizarmos este privilégio que é a possibilidade de preencher nosso mundo de sentido e criação! Inventar é também um exercício de linguagem: só cortando as amarras da linguagem é que podemos liberar a imaginação. Boto mais um pouco de Manoel de Barros aqui, olha o que ele diz:

“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo” – As lições de RQ. Em: Livro Sobre o Nada.

Inventar (minha nossa!) é uma forma de deslocamento: é tirar as coisas dos devidos lugares e aprender a lidar com o indevido das coisas.

Encontro com Juliano Pessanha: filósofo contemporâneo, autor da trilogia “Sabedoria do Nunca”, “Ignorância do Sempre” e “Certeza do Agora”.

Gostei de entender que, neste encontro, Juliano Pessanha nos falou de amor e dor. Poderia ter entendido uma série de outras coisas, mas por ora, escolho assim. Para tratar da idéia de amor, eu abuso e utilizo outro trecho de Manoel de Barros. Este saiu de “Ruína” e está no livro: Ensaios Fotográficos.

“Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono não pode ser apenas de um homem debaixo da ponte (...) O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (...) digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo.”

Anotei uma coisa de Juliano Pessanha que é mais ou menos isso: “Eu vejo o amor como uma grande mentira. É uma promessa que nunca se realiza”. Quando disse isso, lembrei de um conto de Guimarães Rosa onde um personagem chamado João Porém se apaixona pelo amor de uma mulher inventada. Quando lhe é revelado a inexistência da moça, o sentimento de abandono gerado pelo amor vazio é, ainda assim, preenchido todo com a força do seu amor criado.

O amor é você partilhar o abandono. A dor, por fim é esta experiência do desabamento, que desloca e transforma o homem instituído e a narrativa morta, em palavra viva e num homem aberto para adentramentos (no encontro, Pessanha chamava isso de “cuia”). É nisso que me agrada suas idéias de destruição: na ruína, vejo a possibilidade do novo. Inventar é, para mim, uma das formas mais intensas de dar ouvidos aos inúmeros desabamentos do mundo. E deixar de reagir com indiferença aos escombros que o mundo e a sociedade produz.

A poesia, como liberação da linguagem, deve ser não a morada do amor harmônico, mas o abrigo do desassossego da pergunta que tira do eixo as verdades instituídas. Sendo assim, decido por me expor e encerro o registro com uma pergunta de Pessanha e algo que escrevi uma vez, refletindo sobre a imensidade de beleza que existe no mundão, escondida sob outra imensidão de preconceitos e besteiras.

“Viver cabe na caixa ou provoca feridas?”


Desfiz as tranças crespas de meu cabelo e desalinhei.
Resolvi por desobedecer todas as linhas do rosto.
Sujei a face, borrei todos os lábios de um batom também esfacelado.
Enlouqueci ali. Afundei em surto imundo.
Cortei, arranquei as partes do meu corpo.
Até desabar aquelas idéias mortas,
penduradas em cada fio da minha pele,
e encontrar uma imensidade de belezas
insuperáveis ali,
bem ali... naquela entranha de mim.


(Bárbara)

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