domingo, 3 de outubro de 2010

Reflexões sobre o encontro do dia 20/09/2010

Lição de Waly


“A memória é uma ilha de edição”, nos disse Waly Salomão. Inicio o texto com a frase deste poeta para ressaltar uma limitação dos seres humanos, um tanto óbvia. Mas às vezes é necessário falarmos do óbvio, pois, geralmente achamos que conhecemos ou entendemos algo quando na realidade estamos enganados ou equivocados, justamente porque quando achamos alguma coisa óbvia não nos empenhamos muito em pensar sobre ela e acabamos reproduzindo-a de acordo com a forma que a recebemos, deixamos prevalecer uma primeira impressão e nos abstemos do exercício da reflexão.

O ser humano, entre outras coisas, é um ser limitado. Torna-se ainda mais limitado quando passa a achar tudo muito óbvio.

Mas este texto não discutirá o conceito de “óbvio”, embora fale de muitas coisas óbvias. “A memória é uma ilha de edição”, deste modo consideramos o presente texto uma breve reflexão sobre algumas impressões gerais e uma seleção de momentos do último encontro que tivemos.


Arte no espaço


Na parte da manhã conversamos com Thiago Santinho, que trabalha no paço das artes, e Lívia, ex-funcionária do CCSP, ambos integraram um coletivo de ação cultural chamado “O Hospede”, o qual, pelo que entendi, em suas intervenções, tematizava instituições dedicadas à arte. Falaram um pouco sobre algumas de suas intervenções em alguns espaços culturais, assim como, também mostraram exemplos de intervenções artísticas em outros lugares do mundo, problematizando instituições culturais e o papel desempenhado por estas na sociedade onde estão situadas.

Não há imparcialidade ou neutralidade no que vem do ser humano, toda ação carrega consigo seu sujeito (autor). Toda autoria implica o ato de pensar e todo pensar é um produto da relação do sujeito com o mundo, que é também, entre os humanos, fator essencial para que tal relação exista. Pensar é uma forma de se relacionar com o mundo. Partindo do real o pensamento retorna a ele como ação. Pensar é um ato, é uma ação. Todo produto da ação humana carrega consigo a concepção de mundo de seu autor, logo, toda ação é um “colocar-se” no mundo, é um posicionamento.

Não existe imparcialidade no humano. A arte como manifestação do espírito, como produto da relação homem/mundo, não é isenta da concepção do autor. Por mais abstrata e subjetiva que se pretenda uma obra haverá parcialidade nela, pois existe um autor e não há autoria imparcial. A autoria sendo uma ação é uma escolha, e toda escolha é um posicionamento.

Toda obra materializada causará reações em seus leitores, reações que nem sempre será o que esperava seu autor. Cabe a ele ter consciência de que ao postar a obra sua intenção inicial é menos importante do que a multiplicidade de interpretações que seu produto gerará. A arte pode educar, porém, não necessariamente precisa ser didática, embora a didática seja uma arte.

A arte, mesmo não produzida para ser funcional, acaba por desempenhar alguma função social, a qual não necessariamente dependerá da intenção do autor. Mas há também a arte produzida intencionalmente para uma função, a qual do mesmo modo nem sempre se realizará como pretendeu seu criador.

Os autores tomados como exemplo em nossa conversa na parte da manhã se utilizaram de determinado espaço para contestá-lo, suas obras assumiram um papel de antídoto, na mesma lógica em que o antídoto de um veneno tem como matéria prima o próprio veneno. Mas estamos longe de dizer que tais obras trouxeram uma espécie de cura, ver desse modo seria um tanto ingênuo, porém, de fato essas formas de intervenção viabilizaram a problematização do espaço no qual a obra esta inserida. Deste modo às contradições da arte e do espaço artístico se evidenciam através da arte no espaço artístico.


Dialogando com Freire


Na segunda parte do encontro iniciamos com leitura de um trecho de Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, no qual o autor reflete sobre a fala, a escuta e o silêncio, fatores essenciais para a comunicação dialógica. Para Paulo Freire a educação é pratica de liberdade, é movimento, transformação, é a busca do “ser mais”, que acontece através da comunhão entre homens.

Para o autor “ninguém educa ninguém e, ninguém se educa sozinho, os seres se educam em comunhão”, onde o educador se educa e o educando também educa. O diálogo é um fundamento para a educação como prática de libertação. Se educar-se é libertar-se, não há educação nem liberdade se não houver diálogo.

Estamos falando de um pensador que vê a educação além do espaço escolar, como algo inerente às relações humanas no dia-dia, nas relações sociais, a educação como política e efetivação de cidadania. O tempo inteiro estamos nos educando, sendo educadores e educandos, estamos recebendo e devolvendo ao mundo, dialogando com algo a todo momento. Em parte nossas vidas são constituídas de desdobramentos de “como” e “com o que” dialogamos. Deste modo à educação e o diálogo estão no viver, na experiência. Tomar lições de experiências cotidianas é educar-se.

O texto de Freire gerou uma longa conversa a respeito de nosso cotidiano no trabalho. Partimos de uma discussão sobre a fala, o silêncio e a escuta e chegamos a temas como relações pessoais e relações profissionais. Foi uma longa conversa, e não vejo a necessidade de expor aqui detalhadamente como tomou tal rumo. Creio que seja pelo fato de em alguns momentos em nosso ambiente de trabalho, não nos escutamos, e não dizemos o que temos a dizer, ou quando escutamos e dizemos envolvemos o campo pessoal.

Confundir o pessoal com o profissional – e há várias maneiras de se fazer isso – cria obstáculos diversos para o funcionamento da instituição.

Não quero dizer que devemos evitar amizades no ambiente de trabalho, não penso assim, ao contrário, é sempre bom fazer amigos, seja na escola, no trabalho, na rua, no bar, etc.

Vejo amizade (pelo menos a verdadeira, aliás, se não for verdadeira, podemos dar outro nome) como uma relação desinteressada, e é isso que a torna interessante. O essencial da amizade está nas afinidades e afinações entre os seres. Embora também seja uma escolha a amizade nasce de forma essencialmente espontânea. Pessoas não se tornam amigas necessariamente porque estão fisicamente próximas, e nem sempre deixam de ser quando estão fisicamente distantes.

Deste modo, trabalhar com uma pessoa não a tornará, por via de regra, sua amiga. Duas pessoas que não tem a mínima afinidade pessoal, por ironia do destino podem trabalhar juntas. Essas pessoas não podem, nem devem, forçar uma amizade por conta de tal situação, mas cabe à elas buscarem no mínimo uma relação de respeito mútuo durante o tempo em que trabalharão juntas. Não falo aqui de consenso, pois isso nem sempre haverá e nem sempre deve haver. O “bom senso” sim, é imprescindível em qualquer relação. Por mais vago que isso seja, achei que deveria mencionar, pois falar em “bom senso” nos remete à um outro ponto pelo qual passamos brevemente (e talvez até acidentalmente) na segunda parte do último encontro. A hierarquia.

Não me posicionarei aqui contra a organização hierárquica em um loca de trabalho como o nosso, mas como seres pensantes cabe a nós refletirmos criticamente nossa existência, nosso modo de vida, nossas relações sociais, profissionais e a forma sistematizadora de tais relações. Particularmente não tenho a mínima simpatia por qualquer relação ou organização que deturpe a idéia de autoridade agindo de forma autoritária.

Paulo Freire em sua obra também discute a distinção entre a autoridade e autoritarismo. Embora morfologicamente parecidas, tais palavras são semanticamente distintas. Autoridade é relativo à autoria, à responsabilidade pelos atos, todo ser pensante, agente e criador é autor, logo tem autoridade.A autoridade deve ser entendida enquanto elemento construtor, o qual não prescinde do diálogo e da participação de outras pessoas. Tal autoridade dispensa qualquer abuso ou meio de violência, seja física, emocional, psicológica, moral, etc.

Já o autoritarismo funda-se na mesquinhez, na violência e suas variadas formas de expressão, é anti-dialógico e se consolida na imposição de uma suposta autoridade sobre as demais. Nega a participação em grupo e se impõe de forma abusiva e incoerente. Nega qualquer forma de comunhão ou diálogo, nega a autoridade do outro, se baseia na alienação, no “não pensar”, reduz as relações humanas em mandar / obedecer, dar ordens / receber ordens. Assim o autoritarismo na esfera política-governamental nega a cidadania, no âmbito das relações pessoais nega a comunhão. De modo geral, na vida, o autoritarismo nega a experiência, o aprendizado, o “ser mais” do qual fala Paulo Freire.


Gabriel Rocha