sábado, 3 de outubro de 2009



Reflexão sobre a exposição

Paraísos possíveis

Reflexão produzida pelos educadores do Instituto Tomie Ohtake especialmente para o Encontro de Professores, como uma das inúmeras possibilidades de desdobramentos e pensamentos sobre a exposição em cartaz.

Paraísos possíveis de perguntas?

“As vísceras ficam com as mulheres. Fervem-nas, e com o caldo fazem uma massa fina chamada mingau, que elas e as crianças sorvem. As mulheres comem as vísceras da mesma forma que a carne da cabeça. O cérebro, a língua e o que mais as crianças puderem apreciar, elas comem. Quando tudo tiver sido dividido, voltam para casa e cada um leva seu pedaço” (Hans Staden)

“Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo”
João 6:50


A exposição “Paraísos Possíveis” dos artistas Dias & Riedweg em cartaz no Instituto Tomie Ohtake de 23 de setembro a 25 de outubro de 2009 atravessa nossos corpos. Ao adentrar o espaço expositivo e tomar contato com o projeto FUNK STADEN (2007 – 2008) percebemos que algo nos extrapola, algo perfura o nosso modelo de “Eu”. Há um excesso de vida que incomoda nossos olhos, presente em cada movimento, em cada batida de som e em cada gingado dos corpos.

O projeto da dupla de artistas contemporanizou a linguagem do funk carioca a partir da justaposição e da colagem de imagens produzidas pelas memórias do navegador alemão Hans Staden, que registrou sua experiência com o grupo dos Tupinambás , com imagens atuais do pancadão carioca que enche os galpões dos morros nas noites de sexta e domingo ao custo de cinco reais para os homens e gratuito para as mulheres.

Existiria um abismo entre os povos tupinambás e os funkeiros cariocas? Quais as proximidades e distanciamentos entre eles? Qual a distancia entre nós que assistimos as notícias jornalísticas depreciativas sobre o funk na sala confortável de nossas casas e o olhar etnocêntrico de Hans Staden? Hans Staden habita os nossos corpos? Somos realmente capazes de tentar entender o outro a partir de seus referenciais, ou ainda tentamos “catequizar” o diferente, o “estranho” o “exótico”?

O movimento atual do funk carioca (pancadão/proibidão) seria um clichê diante de nossos modelos de vida? Ou não estamos prontos para lidar com essa experiência estética? O funk é estético? Quais são os espaços que produzem a cultura que consumimos? Conseguiríamos identificá-los? Seríamos produtores de cultura? Onde se produz cultura? O funk carioca é cultura? Para quem?

Recuando no tempo, a prática da antropofagia praticada pelos tupinambás foi uma manifestação cultural? Os tupinambás eram primitivos? Bárbaros? Atrasados? Sem almas? Hereges? Deveriam ser catequizados pelo ferro e fogo da igreja católica? Nossos olhares ainda carregariam marcas do etnocentrismo ao olhar para o outro culturalmente diferente de nós? Quem é esse outro? Nós também não seríamos os outros?

Essas questões são algumas das centenas de perguntas que nos fazemos ao mergulhar no trabalho Funk Staden. As três projeções, as fotos e a música alta ampliam os detalhes das pessoas que vivem a cultura do funk em seu cotidiano. Cada mancha de pele, cada dente torto, cada curva dos corpos, cada movimento sensualizado e erotizado, cada rebolado - que é o gingado do sob e desce dos milhares de degraus das escadarias dos morros cariocas - aparecem diante de nossos olhos destruindo os clichês que estamos agarrados e que formatam o nosso modelo de “eu”, sujeito”, “indivíduo” diante do mundo. Eu iria a um espaço cultural ver uma apresentação de funk? Eu iria a um baile funk? E você?

O trabalho nos atravessa, pois (re) apresenta a estética presente fora dos espaços expositivos e fora do circuito das artes plásticas. Durante o século XX, diversos artistas tentaram expandir a discussão proposta pelas artes a partir de trabalhos e ações que misturaram arte e vida. Hélio Oiticica, por exemplo, a partir de 1964 passou a conviver no morro da Escola de Samba da Mangueira e levou o samba junto com a comunidade da “favela” para o museu na abertura de uma exposição. Um ano depois, levou uma manifestação repleta de parangolés na abertura da exposição Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Nesse sentido o trabalho Malas para Marcel (2006 – 2008) que corresponde a um conjunto de doze malas, extrapola e problematiza a relação entre o externo e interno, público e privado, real e virtual, material e imaterial a partir de imagens metalingüísticas que partem do interior de malas. Malas falando de malas, de seus caminhos, percursos e andanças pela cidade do rio de janeiro.

Além dessas questões referentes ao outro e ao olhar que se identifica se reconhece, se distancia, temos o uso da linguagem cinematográfica como suporte, além do uso de gravuras e fotografias. Eles registram o cotidiano a partir da articulação, montagem, e colagem de cenas e momentos criando uma barreira limítrofe entre o documentário e a ficção.

O “outro” como busca contínua em seus trabalhos aparece novamente na videoinstalação A Casa (2007). Quantos “eus” nossos corpos abrigam? Eu sou somente um? Quais são os espaços e lugares que permitem com que os outros sujeitos que me habitam aflorem?

A experiência proporcionada pelo espaço expositivo, de forma geral, permite que o pensamento seja ativado, pois, como apontaria o filósofo Gilles Deleuze, o pensar não é uma faculdade natural do homem, não é uma competência humana, pois pensamos sob o signo de uma violência, de um abalo em nosso corpo. Durante muito tempo, pensamos que tínhamos controle do corpo, como se a consciência comandasse todas as esferas de nossas vidas, mas será que ela não capta somente ecos da nossa existência? Ela é capaz de captar todos os nossos movimentos internos?

O som forte do “pancadão” no projeto exposto perfura nossa pele e faz com que enxerguemos a realidade através de outros sentidos (de forma sinestésica), ao passo que a mente tenta entender essa experiência estética em conflito com os outros referenciais que temos a respeito dessa manifestação cultural. Portanto, o conjunto de dez obras expostas permite com que dilatemos nossa compreensão entre o real e o ficcional ao passo que reapresenta outras estéticas presentes no cotidiano.

Maurício Silva – Educador do Instituto Tomie Ohtake

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