Em plena segunda feira, um exercício de observação do alto de um prédio é como aguçar um novo jeito de ver, aquele jeito que faz os desejos reais, o jeito inimaginável de enxergar as coisas. Olhar esse, essencial para os educadores, um olhar diferente e inimaginável para enxergar as coisas de diferentes formas. Ver os desenhos de cada um é um exemplo de como existem várias formas de se enxergar a mesma coisa.
“A complicada arte de ver”
O texto de Rubem Alves demonstra isso, diferentes formas de se ver uma cebola, os poetas ensinam a ver, isso trás a poesia em sua prática, ativa a criatividade no seu uso habitual, são exemplos de escritores em um jeito diferente de enxergar as coisas.
A leitura do mundo precede todas as leituras, você enxerga a seu redor antes de te ensinarem a ver o seu redor. Por isso temos que concordar com o último parágrafo do texto que diz que a primeira função da educação é ensinar a ver, sugerindo-nos um novo tipo de professor, que nada teria a ensinar, a impor e sim apontaria os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana.
Vejo como é simples a educação de jovens, que aprendem com a vida mais que com qualquer professor, vejo também o distanciamento dos próprios professores em relação as questões dos jovens, que diretamente refletem na má educação dos mesmos. Essa falta de apontamento de assombros que crescem na banal vida cotidiana é o exemplo do não cultivo da criatividade nos jovens.
Isso exemplifica resumidamente que um educador nada tem a ensinar e sim, somente responder dúvidas e sugerir questões.
Nós como eternos discípulos, as vezes só precisamos de um toque, um toque que nos livre de padrões rotineiros, que nos force a pensar e repensar os problemas nos estimulando a fazer novas perguntas que nos levem a outras respostas certas.
Toques existem de todas as formas, tamanhos e cores. Mas todos, tem uma coisa em comum, obrigam você a pensar coisas diferentes – pelo menos na hora em que acontecem. As vezes, o toque vem por causa de um problema ou um erro, pois muitas vezes por mais que nos seja sugerido outras formas de ser feito, só aprendemos com o próprio erro e com ele, aprimoramos a saída do problema. Às vezes, ele é conseqüência de uma brincadeira ou de um paradoxo. Em outras ocasiões, é uma surpresa ou situação inesperada que causa o toque como solução imediata.
Existem mil exemplos de como podem surgir esses toques na cuca dos educandos, cabe a nós como educadores, não somente apontá-los como também incentivá-los, como se estivéssemos plantando a semente de uma grande árvore, regando-a com atenção para que ela cresça forte e viva milenarmente por si só.
Um outro olhar pela cidade, uma outra visão:
“Bairro reconquistado” , título do poema do argentino Jorge Luiz Borges
nos sugere a apropriação do que é nosso e muitas vezes passam despercebidos como tal. A rotina dos dias de hoje, a troca de certos valores e uma doença mental que vem varrendo o planeta: a banalização. Refletindo nosso cotidiano vemos essa banalização estampada muitas vezes, em uma hipnose por bens de consumo, como eletrodomésticos, elevadores, banheiros luxuosos, coisas que nos distanciam cada vez mais da nossa vida externa sendo assim, do nosso próprio bairro, muitas vezes o primeiro contato com o mundo fora de casa.
Pensando nisso, vejo que o indivíduo que não analisa, não participa do seu bairro, não o observa com outros olhos (olhos de poeta), não o enxerga além de seus problemas, de sua arquitetura e além de seu cotidiano, buscando as soluções, não tem condições de tomar as rédeas nem de sua própria existência, pois é comprovado que deis de sua arquitetura, disposição de cores, signos e elementos, o urbanismo influencia no psicológico do ser humano. Muitas vezes quando não enxergamos o nosso bairro além do que ele é e não o transcendemos para o que ele poderia e pode ser, praticamos a desapropriação do que é nosso.
Ivan Chtcheglov em seu texto” Fórmula Para uma Nova Cidade” de 1953 sobre urbanismo, encara as cidades como locais para “ novas visões de tempo e espaço.”
A natureza exata dessas “novas visões” seriam estabelecidas pelos padrões de comportamento em ambientes urbanos. A arquitetura seria uma ferramenta para a transformação da vida.
Tal transformação é necessária por conta da banalização dos dias atuais, trazendo a arquitetura que consciente e inconscientemente interfere na vida do indivíduo, para chamar-lhe a atenção dos diversos aspectos de “sentimentos que encontramos ao acaso na vida cotidiana”.
Uma vez que hacienda, como era chamada a cidade experimental, tivesse sido construída, todos viveriam em sua própria catedral. Existiriam diferentes bairros na cidade, que corresponderiam aos diversos sentimentos que encontramos. O princípio de atividade dos habitantes seria uma “troca contínua’’. Isso quer dizer movimento através de um ambiente urbano de acordo com as solicitações da arquitetura e os desejos de cada um.
Baudelaire rapidamente me vem à mente, como exemplo de tratamento romântico de urbanismo e da cidade grande que é conceitualmente próximo a Chtcheglov. Uma citação do livro de Walter Benjamin ( Charles Baudelaire, Um lírico no auge do capitalismo) pode ilustrar isto. O trecho começa com a citação de Flores do Mal, de Baudelaire:
“ Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso Sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Buscando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Topando imagens desde há muito já sonhadas”.
“ As descrições da cidade grande procedem daqueles que, por assim dizer, atravessaram a cidade distraídos, perdidos em pensamentos e preocupações. É a eles que faz jus a imagem da estranha esgrima; Baudelaire teve em mira seu comportamento, que é tudo menos o de um observador. Baudelaire não recolhia em seu espírito a impressão das coisas; seria mais correto dizer que era ele quem imprimia o seu espírito nas coisas”.
Entramos mas uma vez no assunto mais do que esclarecido, que é a forma como enxergamos as coisas e como podemos vê-las, como podemos não somente ser influenciado pelo ambiente, como mais do que isso, podemos influenciar esse ambiente.
O exercício com o grupo CONTRA FILÉ nos dá um norte e demonstra na prática como podemos perceber os acasos do nosso cotidiano e enxergá-los com outros olhos. Sugerindo que marcássemos num mapa esticado no chão um caminho rotineiro que poderia ser o de casa para o trabalho ou qualquer outro que tenha sido freqüente em algum determinado período de nossas vidas. Eles pediram para que repensássemos este caminho, que o refizéssemos em nossas cabeças e marcássemos algo que neste caminho, nos atravessasse, deixando no ar a pergunta:
Nesse caminho, o que te atravessa?
Ao meu entendimento eles quiseram sugerir que olhássemos para esse caminho como nunca tínhamos olhado, que refletíssemos sobre o mesmo criando uma outra visão para o que vemos todos os dias. Me sugeriu fleches de memória sobre algum determinado lugar, a questionar o que nos leva a este lugar, alguma determinada coincidência (acaso objetivo) ou até mesmo algo do destino que me faz cruzar todos os dias o mesmo lugar rumo ao mesmo destino. Também me fez pensar o por que de eu ir para aquele lugar todos os dias, escrever sobre o caminho que faço todos os dias, o contraste de geografia da região onde moro para região que vou todos os dias. Revigorou contrastes sociais de lugares e culturas distintas. Exemplos:
Mônica
Liberdade sentido cachoeirinha, escreveu uma música sobre o caminho que fazia.
Ziza
cachoeirinha sentido metrô Carrão, ela vai pensando na vida quando está no metrô, já pensou em anotar os pensamentos pelo caminho que faz diariamente. Entre as coincidências do seu caminho, tem uma que me envolve, pois morei seis anos de minha vida aos arredores do metrô carrão, tendo me expressado com pinturas na linha do trem que graças as coincidências da vida, citado pela própria Ziza, ilustra o seu caminho diário me fazendo presente em seu cotidiano e provando que muitas vezes os lugares remetem a lembranças, acontecimentos ou até mesmo, como é nosso caso, a pessoas, por isso não é de bom grado desperdiçar coisas que aparecem a nós por acaso.
Paula, no trajeto que faz a pé de casa ao trabalho, ao passar pela escola onde estudou, se lembra da infância, de sua época de escola, momentos importantes que traz com sigo até hoje. A escola por não passar despercebida em seu cotidiano pode remeter a ela deis de uma simples lembrança , como de uma simples lembrança tirar a solução para uma questão do tempo presente. Ai está um exemplo da prática do olhar de poeta.
Juliana, a cidade onde mora não estava presente no mapa, rapidamente ela sacou a caneta e o papel e se inseriu a seu modo. Para mim mais um modo de se inserir no cotidiano, influenciá-lo, pois ela poderia muito bem reclamar que não tinha a cidade no mapa como fez a senhora que declarou morte ao ipê por sujar sua calçada. Fez juz a frase, “ter olho de poeta” e criou do seu jeito o seu caminho. Ela também ressaltou um flautista que faz parte do cotidiano dela quase todos os dias, tocando a flauta e falando coisas que ninguém da atenção, exceto ela que diz reparar, ouvir e admirar a intervenção do rapaz em seu cotidiano.
Após esses exemplos fomos incentivados em um exercício ao belo estilo Debordiano, a sair com uma câmera e recolher depoimentos, levantar questões sobre o que geralmente as pessoas não estão acostumadas a pensar.
O meu grupo decidiu levantar a seguinte questão:
Quem é seu vizinho?
Levantamos esta questão por que queríamos ir ao contrário de tudo que vínhamos debatendo e chegarmos o mais próximo possível das pessoas e a relação entre elas, pois observamos que muitas vezes as pessoas estão focadas em relações além de seu próprio bairro e nem tem o mínimo de relacionamento com o seu visinho.
Na primeira abordagem, um homem cujo a idade aparentava entre vinte e sete, no máximo trinta anos, nem quis responder a nossa pergunta quando soube do que se tratava, virando as costas e saindo gesticulando que estava sem tempo e não estava interessado. Rapaz novo, bem apessoado, bem vestido, socialmente aceitável, não pode nos dar atenção quando o questionamos sobre seus vizinhos. Mesmo assim sua própria atitude, normal nos dias de hoje, respondeu em parte nossa pergunta.
Nossa segunda abordagem foi um homem aparentando ser um pouco mais velho que o primeiro, se tratando somente de idade. Era um bom-vivã, típico da Vila Madalena, homem simpático, atencioso, vinha com seu guarda chuvas e, quando soube que éramos do instituto Tomie Ohtake, aceitou dar seu depoimento, mas com uma condição: a de após sua entrevista dar uma sugestão referente ao prédio do instituto, mas precisamente ao ponto de taxi que fica em frente ao instituto.
Fizemos a pergunta, quem são seus vizinhos?
De prontidão ele respondeu, Dona Ilda do lado direito e a dona chinesa que não me lembro o nome do lado esquerdo. Se referiu as casas das duas como sendo de cor bege, sabia do tom pois fazia pouco tempo que haviam pintado a fachada. Disse também que mantinha o mínimo de cordialidade entre os vizinhos, os cumprimentavam com bom dia e boa tarde, o normal de qualquer vizinho, disse ele. Disse também que mantém contato com um outro visinho sempre que lhe entope a calha, mas fora isso, só fica nos comprimentos ditos como básicos ( bom dia, boa tarde e boa noite)e essenciais para o relacionamento social, além de escasso nos dias de hoje.
Acabando de falar, logo emendou sua sugestão bem humorada sobre o ponto de taxi em frente o instituto. Sugeriu que o ponto passasse a se chamar “Tomie o taxi” em alusão ao instituto Tomie Ohtake e saiu girando o guarda chuva como temos registrado em câmera de vídeo.
Essa sátira, além de representar seu ótimo estado de espírito, também representa em seu ponto de vista social, a prova de que ele está interado com o seu redor, com o lugar onde vive, está interado com seu cotidiano, levando em conta que centenas de pessoas que passam todos os dias em frente o prédio e nem sabem do que ele se trata, não enxergam nada além de um prédio grande que chama atenção quando se passa por ele.
Talvez isso ocorra por essas pessoas não morarem na região, por se encontrar em uma situação econômica, sendo assim sócio-cultural diferente da dele, ou simplesmente por não ser mostrado a elas outras formas de se enxergar ao seu redor, não foi ativado nelas o “olhar dos poetas”.
Nosso próximo entrevistado foi um jovem de no máximo quinze anos, Wesley, morador do bairro do Grajaú, disse que costuma fazer quase sempre este trajeto de volta para casa. Perguntei a ele quem eram seus vizinhos, ele deu uma pensada rápida e
respondeu: Dona Cida e dona Selma.
Em seguida perguntei a cor das casas das vizinhas, ele disse que a da Dona Cida era um portão grande e preto e a casa da Dona Selma era uma casa amarela. Perguntei também sobre o relacionamento com elas e ele me falou que a Dona Cida, apesar do seu portão ser preto era mais animada, mais legal, pois a dona Selma implica com os meninos que brincam na rua.
Fora isso ele disse que tem um bom relacionamento com as vizinhas e elas duas são muito solidárias, chegando a freqüentar a casa da Dona Cida por ser amigo do filho dela.
Cheguei a minha conclusão partilhando da mesma com o grupo, percebemos que diferente do convívio entre os visinhos da região do instituto, dita como uma região mais nobre, as regiões mais afastadas do centro como a de Wesley, os vizinhos costumam ser mais solidários uns com os outros, exercendo um papel social fundamental nos dias de hoje e que vem sendo extinto nos grandes centros urbanos: o relacionamento entre pessoas. Restrito somente a necessidades como vemos no caso do nosso primeiro entrevistado, que um de seus vizinhos só lhe dirige a palavra para desejar bom dia ou sobre sua calha que entupiu.
Depois deste ótimo e esclarecedor exercício voltamos para sala para ver e discutir o material recolhido pelos grupos.
Cada grupo escolheu um tema diferente, abrindo um leque de perspectivas próprias de resultados em jogos como estes. Os grupos levantaram questões como: o que te trás uma lembrança de algo pela região á, até mesmo, o que é o prédio do instituto e o que funciona nele.
Esses tipos de jogos que trabalham e analisam noções de psicogeografia á influências do ambiente sobre o individuo, são fundamentais para formação de educadores como nós. Pois sabe-se que a psicogeografia(termo geral para o fenômeno de vagar sem rumo, pesquisar sem rumo) pode determinar o estudo de leis precisas e efeitos específicos do ambiente geográfico, organizado, consciente ou não, nas emoções e no comportamento dos indivíduos. E que, o adjetivo psicogeográfico, sendo agradavelmente vago, pode assim ser aplicado aos achados resultantes deste tipo de investigação, à sua influência nos sentimentos humanos e, ainda mais genericamente, a qualquer situação ou comportamento que pareça refletir o mesmo espírito de descoberta. Sendo assim, é fato que as descobertas psicogeograficas em nosso ambiente são o primeiro passo para transformá-lo. Papel fundamental para nós educadores é o de abrir os olhos da leitura do mundo, deixar nítidas as imagens nubladas que se sobrepõe ao dia a dia, aguçar a visão que passaria despercebida ao acaso, chamar atenção para o acaso, enxergar as coisas de vários modos, fazer do aprender uma eterna pesquisa onde não existe um único ensinar e sim um “vagar sem rumo” para ao final se ter sínteses sobre várias teses e antíteses. Estes são alguns dos ensinamentos que levo dos exercícios sugeridos pelo COLETIVO CONTRA FILÉ, sem excluir o texto de Ruben Alves ”A complicada arte de ver”, e o poema “Bairro reconquistado” de Jorge Luiz Borges que também ilustram isso trazendo a poesia para prática da educação e, por excelência para prática da vida cotidiana. O dia 17 de novembro de 2008 serviu para abrir novos olhares para as mesmas coisas, abrir um terceiro olho, uma janela na nossa alma, janela essencial para um verdadeiro educador.
"Bruno Pastore"