terça-feira, 17 de novembro de 2009

Difícil e prazeroso agregar as coisas



Difícil e prazeroso agregar as coisas.



É desta afirmação que vou partir para descrever minha experiência enquanto curadora da Mostra Andares Secretos.
Criar uma narrativa para descrever todo o trajeto, o percurso que atravessei, desde a carta aberta para convidar os artistas, que naquele momento significou exatamente: qualquer pessoa interessada, até as visitas dos artistas que recebi no Centro Cultural da Juventude, completos desconhecidos para mim em sua maioria, até hoje, quando vou até o Foyer dar uma espiadela na exposição, repor o pigmento em pó da instalação do Victor Sardenberg, ver se está tudo “ligado” e “acesso” para fazer o efeito que pretende.

Quem é o curador, o que é esta palavra carregada de significados?
Tirando as vestes daquilo que se entende por curador, e daquilo que eu entedia antes da experiência e daquilo que eu não entendia também, eu afirmo que na concepção que surge em meu corpo, curador é o artista agregador, aquele que se aproxima para conhecer e somente olhar e se afasta para trazer um novo respiro para aquilo que viu, recombinar com algo que supostamente não se encaixaria ali, costurar ferro em algodão, é juntar fotografias de Tadashi com pigmento de Victor e chumbo de Lucas.
É unir, além de tudo, é tornar possível, amalgamar tudo e ver no que vai dar, sem pretensões, sem aspirar algo além daquilo que vai surgir, é atingir o contentamento com aquilo que veio, sem juízo de valor algum, foi bom, ruim? O que conceitualmente você pensou? Nada importa, estou contente, o processo é que me instiga e não o resultado.
Este texto surge para dar voz ao processo, a como senti o que aconteceu, e por isso surge agora, “depois da chuva”.
Me lembro da exposição Intermembranaceo que aconteceu no CCJ no período de 02 a 30/08/2008, de como achei incrível a ocupação daquele espaço aparentemente esquecido. De como ganhou luz e força, das vezes que fugia para lá e ficava lendo os desenhos colados naquele parece lá no fundo perto da entrada dos camarins, do incômodo que formas que lembravam o corpo humano e suas secreções incomodavam alguns.
E a partir da oportunidade de escolher algo para organizar em novembro, não tive dúvidas de que eu adoraria ver surgir uma nova ocupação daquele espaço, e de como sinto falda da disseminação da linguagem pela qual as artes plásticas transmitem conhecimentos, afetos e sentimentos, por parte da programação do CCJ.
Eu não sabia sobre o que a exposição falava até o momento que a vi “pronta”, tinha desejos e idéias e vontade de transmiti-los, pensar em um tema, uma amarração, curadoria é isto, botar um monte de coisa num saco e amarrar...








Pensando em temas recorrentes na minha vida -porquenãodáparasepararvidaeartenemapau- cheguei na imagem de um apartamento, na segmentação da vida em cômodos, que me soam como incômodos na verdade, tudo separadinho um lugar para cada fazer da vida, comer na cozinha, dormir no quarto, pensei na cidade inteira, vendo os prédios pela janela da Heitor Penteado, vendo através do cinza, olhando com raio x, vendo as pessoas nos quadrados, a vida presa nisto, surgiu a palavra andares, antes surgiu apartamento, que nome! E a gente aceita numa boa, sonha com isto, queria alertar sobre isto, fazer um pouco de alarde com esta palavra, fazer sirene com ela.
Mas andares também era bom, porque vi os andares dos apartamentos e pensei nas pessoas andando dentro deles, vi seus paços aflitos vindo da rua e entrando neles, andando sempre no mesmo rastro do banheiro para o quarto, tirando a poeira com os pés.
Fiz um texto curto tentando sintetizar este pensamento e compartilhei com os artistas que me procuraram, alguns não entenderem e não entendem até hoje, alguns gostam e pedem que eu fale mais e uso ilustrações, algumas analogias abstratas da minha vida pra fazer compreender:

O Bruno que participa da mostra me perguntou e eu falei para ele:
Sabe quando já é tarde e você fica dentro do vagão do metrô sozinho?Andares Secretos fala um pouco sobre isto.
Mas como tudo é aberto a significação e a graça da Arte é esta, (graça de oferenda e as vezes de riso) a cada dia sinto que a mostra me fala algo, como o calendário do Seicho No Ie pregado na parede que viro a cada dia.
É bom estar no meio disto tudo, nas engrenagens, no ferver do pensamento do outro, na verve, ver os olhos brilhar, observar alguém escrevendo um texto, pregando um prego alí e não lá, e saber e sentir de alguma forma porque isto acontece, porque o alí é exatamente alí e não lá.
Ver pessoas jovens de fé, porque para fazer arte tem de ter muita fé mesmo, se movimentarem para longe de suas casas, com seus trabalhos embaixo do braço, dentro de sacolas de pano, almoçar yakisoba no chinês do largo do japonês, não ganhar dinheiro, nem pensar em ganhar dinheiro com isto, colar papelzinho na parede, se apaixonar pela minha Olivetti (máquina de escrever que faz muita coisa além de escrever) tanto quanto eu sou apaixonada por ela, me sentir viva e fazendo algo por/para/com outros que vibram na mesma força, que amam e detestam o cubo branco, ver as pessoas/público/artistas também, entrarem no cubo e esquecerem o que estavam pensando segundos atrás para pensar:
- o que este troço tem para me falar?

E no fim/começo/meio chegar da rua e ver as pegadas amarelas no chão e pensar: que bom!, suspirar a delícia do pensamento/lampejo que é saber que tem alguém olhando, e sonhar que esteja sentindo o que senti, que seu coração tenha batido num timbre diferente naquele momento, que tenha visto luzes e que algo tenha sido ensinado, sem forjar, sem forçar a barra, o contato com a “obra” basta.
Assim enxergo, assim me tornei, fui tornada feito uma torneira que jorra ou entornei-me ARTISTA. (tem de ser grande e em negrito porque se assim não for perde o sentido)


Entornar:

Inclinar (um vaso) para principiar a esvaziá-lo.
2. Derramar, verter.
3. Infrm. Beber.
4. Fig. Transtornar, deitar a perder.
v. intr.
5. Beber muito.
v. pron.
6. Derramar-se, verter-se.
7. Cair (uma vasilha) para o lado.
8. Gorar-se, perder-se (um negócio)

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